Artigo publicado na revista "Selecções do Reader's Digest",
Abril de 1953, n.º 135 – Edição brasileira, da autoria de
A. J. Cronin.
"Ao brilho intenso do sol dos Alpes da Sabóia francesa, depois de uma subida extenuante, normalizei a respiração e puxei a corda da campainha. Aberto o postigo da pesada porta, após um momento de exame, um irmão leigo de capuz pardo introduziu-me, silenciosamente, num pátio murado, onde, entre canteiros de flores a zumbir de abelhas, uma fonte cantava. Adiante, de cada lado da vetusta igreja, corriam dois compridos claustros arqueados, dos quais saíam fileiras de curiosas moradas de íngremes telhados vermelhos. Percebi logo que se tratava dos eremitérios individuais onde habitam, na solidão e no silêncio, os monges da Ordem.
Sabendo que quase nenhum estranho tinha entrado naquele remoto santuário, experimentei profunda palpitação de expectativa. Depois de uma velocíssima viagem de 6.500 quilómetros, e sentindo ainda nos ouvidos o burburinho de Nova York, eu me encontrava no pátio do famoso mosteiro da Grande Cartuxa.
Mas eis que se aproxima de mim, com passos rápidos e com um sorriso tímido mas amistoso, um vulto franzino de hábito branco. Era o Prior, homem dos seus 50 anos, de face corada e de olhos de um azul muito escuro. Deu-me as boas-vindas com simplicidade e dignidade, e ouviu, cortesmente, a explicação dos motivos da minha visita. Depois levou-me a um eremitério desocupado e disse que o Padre Arquivista iria acompanhar-me numa visita geral. E retirou-se.
O eremitério era de pedra e tinha no andar térreo uma pequena oficina com ferramentas, um banco de carpinteiro e um depósito de madeira; no andar superior ficavam o oratório singelo e o quarto de dormir. Nesta, o que vi foi uma mesa simples de carvalho, um pequeno aquecedor de ferro, uma estante de livros, um modesto genuflexório e a cama com um tosco colchão de palha.
Um sino tocou suavemente, ecoando entre os cumes banhados de sol. Lá no alto, o céu era de um azul ofuscante. Tomado pelo sentimento da solidão que me cercava, sentei-me. Era ali, naquela prisão voluntária, que um homem tinha decidido passar toda a sua vida. Era ali, que ele trabalhava e orava, cultivava o seu pequeno jardim e se entregava àquela intensa contemplação que é o fim e o propósito do monge cartuxo.
Nessa altura ouvi uma leve pancada na porta. Era Dom Arthaud, o padre Arquivista, homem idoso mas de porte viril, rosto largo e simpático, olhos castanhos inteligentes piscando brejeiramente atrás dos óculos, para surpresa minha.
- Às suas ordens, senhor. Que deseja saber? – perguntou-me ele depois de me cumprimentar.
- Tudo. Diga-me antes de mais nada: guarda-se aqui silêncio absoluto?
- Exactamente. Excepto, é claro – acrescentou, fazendo uma delicada vénia – quando recebemos a honra de receber alguém como o senhor.
- Quando começa o dia para os monges?
- Às 5 e 45 levantamo-nos com o sino e nos ocupamos com orações até às 7 e 15.
- E em seguida fazem a primeira refeição?
- Não. A nossa primeira e única refeição completa é feita ao meio-dia.
- Somente ao meio-dia?! – Exclamei. – Em que consiste?
- Em geral, consta de verduras da nossa horta.
- Comem carne de vez em quando?
- Nunca. (O meu espanto pareceu diverti-lo.) E uma vez por semana, bem como em muitos dias especial, o nosso único sustento é pão seco e água.
Os meus olhos viraram-se para a dura cama de madeira.
- Deitam-se cedo? – perguntei.
- Sim. Às seis e meia da tarde.
- Pelo menos têm um bom descanso à noite.
- Só até às 10 horas – disse o monge com um sorriso suave. – Então o sino toca, nós nos erguemos para o Ofício nocturno, e depois, acendendo nossas lanternas, vamos para as devoções em comum na igreja.
- Mas então quando é que se deitam?
- Cerca das 3 da manhã.
- E tornam-se a levantar às 5 e 45!
- Exactamente… E garanto-lhe que é descanso mais do que suficiente. – O monge apertou-me o braço, como que para abafar em mim qualquer expressão de dó.
- Venha comigo. Vamos dar uma volta pelo mosteiro.
Enquanto me conduzia pela belíssima igreja, com magníficos assentos e coro lavrados, o Padre Arquivista informou-me a fundação se devia a S. Bruno, com mais seis companheiros em 1084. Mas o que me interessava mais era o lado humano do que o histórico. Enquanto caminhávamos por um corredor de lajes, húmido mesmo naquele dia de Verão com o calafrio da antiguidade, perguntei:
- Vocês não sentem frio aqui no Inverno?
- Oh não. – Ele bateu familiarmente a pedra nua como quem tocasse o ombro de um velho amigo. – As paredes são espessas. E nós temos os nossos pequenos aquecedores.
- Mas parece que não aquecem grande coisa…
- Talvez não. – O piscar dos seus olhos acentuou-se. – Mas rachar lenha nos aquece.
Pensei nos longos meses de neve, nas procissões nocturnas através da escuridão gelada, no serviço religioso à meia-noite naquela igreja imponente e tenebrosa, e não pude reprimir um arrepio. Ao dobrar uma esquina, vimos um jovem leigo empurrando um carrinho cheio de fatias de pão, parando para deixar uma fatia na janelinha de cada eremitério.
Dom Arthaud explicou que aquele brave garçon voltara à pouco do serviço militar, tendo-se distinguido na campanha da Indochina.
- Cada qual toma a sua refeição sozinho?
- Sim… sempre na solidão.
- E é essa a sua ração de hoje?
O Padre Arquivista fez que sim com a cabeça. Com adorável simplicidade, dobrou o possante bíceps e disse:
- O pão é bom. Eu deixo um pedaço de pão sobre o meu banco de carpinteiro quando trabalho… como e trabalho… como e trabalho… trabalho e como… Ninguém pensa em comida quando está deveras ocupado.
- Ocupado?
- Fique certo, meu amigo, que o tempo não dá para o que desejamos fazer. Os bancos esculpidos à mão que o senhor tanto admirou na igreja são todos trabalho dos nossos monges. O mesmo se dá com estes painéis – e mostrou uns lindos trabalhos de linho lavrado ao longo do vestíbulo interno. – Também os móveis do nosso mosteiro, os armários do vestiário e inúmeras outras coisas… Como vê, até no sentido mais material não somos totalmente ociosos.
Prosseguimos a visita pelo claustro. O Padre Arquivista indicou um ermitério próximo e explicou:
- Ali mora um americano… Temos aqui dois americanos. E um padre mexicano. Outro da Áustria. Até um do Japão temos aqui.
- Então vêm gente de toda a parte?
- Sim, meu amigo. Mas temos todos um destino comum.
Com um gesto expressivo ele conduziu-me por uma arcada gótica a um pátio relvado coberto de flores e de flores silvestres. Ali, em filas bem ordenadas, via-se uma série de singelas cruzes de madeira preta, sem nomes, nem inscrição.
Fiquei calado por algum tempo.
- São muitas juntas umas das outras… aquelas cruzes – disse eu por fim.
- Nós não ocupamos muito espaço. Isto porque não precisamos de caixões. Como em vida, basta-nos uma tábua para deitar-nos em cima.
De volta ao eremitério e novamente só, tratei de por em ordem as minhas ideias. O modo de vida naquela prisão voluntária era muito mais severo do que eu havia imaginado. E no entanto, em vez de tristeza peculiar à penitência, em vez da melancolia do ascetismo que eu esperava, o que parecia impregnado na própria substância daquelas antigas pedras cinzentas era uma alegria despreocupada.
O sino soou mais uma vez. O sol escondera-se atrás dos pícaros da montanha. E com a passagem silenciosa das horas naquela estranha existência, que vista de fora, parecia falsa e contrária ao bom senso, assumiu um tranquilo ar de sanidade, enquanto o mundo hostil e absurdo lá de baixo se apresentava perdido no caos e na confusão.
Lá em todos os continentes, os homens disputavam desvairadamente o lucro, e em momentos de lazer só se preocupavam com divertimentos que lhes deleitassem os sentidos. A televisão lampejava, o rádio papagueava, os aviões roncavam fendendo as nuvens com maior rapidez que o som, grandes navios atravessavam velozes os sete mares transportando cargas humanas para aqui e para ali, em busca de riqueza ou de prazer. Ao mesmo tempo, porém, a atormentada e perplexa, vítima de um profundo desassossego, a Humanidade não conhecia a verdadeira felicidade. Em cada terra, ganhando malignidade cada dia, acumulavam-se os apetrechos feitos pelo Homem para a destruição de seu semelhante.
A ciência era agora a senhora, a pobre Humanidade a escrava, e o Homem, esquecido da simplicidade dos seus antepassados, atolado num imenso lamaçal de interesses individuais e de ideais falsos, extenuava-se e suava para fazer girar o moinho sem fim da sua própria desagregação. Essa, debaixo do seu verniz de civilização, era a triste epopeia da Terra, um mundo de trágicos desatinos girando pelo espaço, tendo apenas alguns poucos a erguerem o espírito, o coração e a voz para o Criador.
Não seriam, pois, mais sábios aqueles que tinham resolvido passar os seus dias neste retiro monástico, longe do barulho e da fúria mundana, perto da abóbada celeste, de maneira a poderem fixar permanentemente a vista nas verdades eternas e oferecer talvez, por suas humildes preces, uma reparação pela culpa dos outros?
Poucos, sem dúvida, são capazes de tal retraimento. A convicção deste facto enraizou-se em mim à medida que os dias passavam e eu conheci privações insólitas, o tormento das noites sem dormir e da alimentação espartana, a angústia da solidão nova.
Mas da experiência foi nascendo pouco a pouco uma verdade fulgurante. No supremo isolamento da Grande Cartuxa, inatingível embora para a maioria de nós, encontra-se uma salutar advertência – a necessidade imprescindível que todo o homem tem de se separar dos outros de quando em quando e fazer uma peregrinação interior ao seu próprio coração. Colhidos no vórtice da vida moderna, enredados nas suas complicações, adquirimos o medo de ficar sozinhos e preferimos procurar qualquer distracção do que permanecer na sempre difícil companhia dos nossos próprios pensamentos.
A minha estada ali tinha, forçosamente de chegar a um termo. Quando me despedi dos bons monges e desci à planície lá baixo, senti uma estranha tristeza no coração. Mas, percebi, claramente, que a minha subida ao convento não tinha sido em vão e aprendi a lição da Grande Cartuxa. A sua mensagem era, manifestamente esta: que de vez em quando devemos tomar um pouco de tempo às múltiplas preocupações do nosso trabalho e das nossas distracções para reajustar o nosso senso de valores, para relegar ao seu lugar próprio os nossos desejos materiais. Banindo da nossa boca a inevitável desculpa: Eu bem desejava, mas não disponho de tempo", devemos arranjar um tempo – cinco, dez, vinte minutos ao fim do dia, uma hora em cada tarde de domingo consagrado a um passeio de meditação, um fim-de-semana, de tempos a tempos, inteiramente dedicado a recolhimento. Então veremos como são de pouca importância as coisas que perseguimos com tanto afã; então, talvez, pudéssemos descobrir não só a consciência de nós mesmos, mas o que é muito mais importante – a existência da nossaprópria consciência."
Ontem como Hoje, esta Vocação, tem muito a dar ao Mundo.