17 novembro 2011

Carta a um amigo preso numa cela que está dentro dele

"Os comboios têm uma característica que nenhum outro meio de transporte tem. Podem andar para trás. Ou melhor, têm bancos que permitem ao passageiro viajar de costas para o sentido da viagem. Como eles, talvez só os barcos, na altura em que desembarcam de qualquer porto, e os passageiros se debruçam no convés, à ré, a contemplar o percurso da ausência.



Mas os comboios são especiais. Naquelas cadeiras, a paisagem vira-se ao contrário. Eu nunca estou a chegar, estou sempre a partir; nada se aproxima de mim, todas as coisas fogem, as paisagens, os postes, as pessoas. Todas as coisas começam, de repente, grandes, e acabam por diminuir, tornar-se minúsculas, irreconhecíveis, ínfimas, nada.


Não te consegui ajudar. Não quiseste ensinar-me a ajudar-te. Ainda não sei porque é que, quando atravesso a tua cidade, perto da tua casa está sempre a chover. Na tua cidade, nos meandros da estação, há sempre um rapaz gordo, de passos lentos e pés solenes, agarrado a um guarda-chuva que nunca condiz com a roupa, sempre à espera. Se calhar à espera de uma rapariga, que se calhar gosta dele só como amiga, e se calhar nunca lhe apareceu, nem lhe aparecerá, e ele vai ficar ali, sempre à espera, a acreditar. É também na tua cidade que há um mendigo sentado num degrau sujo da rua mais deserta, e ele acredita, acredita, acredita, que lhe hão-de encher o copo de esmolas, apesar de estar na rua mais vazia, na noite mais escura, sob a espessa chuva.


Acho que tu vives numa das «Cidades Invisíveis» de Italo Calvino. Aquela que está dividida em duas partes: metade é a cidade monumental, cheia de indústria, comércio, serviços e ruas calcetadas. A outra metade é um imenso parque de diversões. Quando os habitantes se cansam das diversões desmontam metade da cidade: os monumentos, as indústrias, o comércio, os serviços, as ruas calcetadas, e vão construí-la noutro lugar. Se calhar perto de um outro enorme parque de diversões.


E tu tens pesadelos, acordas, de noite, a suar, porque aqueles que construíram a tua casa a desmontaram agora, pedra a pedra. Querias que tudo mudasse menos os teus alicerces, os teus pilares, o quarto onde descansas.


É por isso que costumas chorar, mas de uma forma que ninguém nota, tão delicadamente que as pessoas pensam que estás a sorrir, ou até a contar uma anedota brejeira. Mas eu dei por isso que choravas para dentro e sou mais culpado do que todos os outros porque soube, dei por isso, e ri com as tuas anedotas e o teu sorriso. Mesmo que te zangues com alguém, ninguém dá por isso, porque sorris. E até acho que morres de saudades de alguém só quando ele está perto de ti. Que mundo é o teu? Construímos pontes para serem belas e nunca atravessadas? Porque é que te foram roubar os alicerces da tua casa, pedra a pedra, até que ela foi desmoronando aos poucos, quase sem dares por isso?


Quando comprei o bilhete de partida, na estação onde está o rapaz gordo, de pés solenes, longe do mendigo que ainda acredita com o copo vazio, quando comprei o bilhete para sair da tua cidade invisível, pedi um lugar daqueles que andam ao contrário. O bilheteiro olhou para mim com ar de quem olha para um coala e perguntou se eu tinha a certeza. Eu disse que não, mas queria por força um desses lugares.


A única certeza que eu tinha é que, durante aquela viagem, eu não te voltaria as costas. Estou agora sentado no comboio. Vi-te, nitidamente, no apeadeiro da cidade ausente. Vi-te ficares para trás, mais pequeno, minúsculo, ínfimo. Sempre com a certeza de que eras tu. Porque, se à chegada se começa a ver um ponto irreconhecível e se o vai conhecendo à medida que se aproxima, à partida, mesmo que se não veja, sabe-se quem lá está sempre. À chegada há a esperançosa dúvida. À partida, a amarga certeza. A curva tirou-te da vista, a distância pôs-te longe demais, até a curva da terra quase nos colocou em hemisférios diferentes. E tu podes ter ficado a pensar que eu parti para outra. Mas eu juro que não te voltei as costas."

Artigo publicado no jornal de hoje "A União"

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