"Os comboios têm uma característica que nenhum outro meio de transporte tem. Podem andar para trás. Ou melhor, têm bancos que permitem ao passageiro viajar de costas para o sentido da viagem. Como eles, talvez só os barcos, na altura em que desembarcam de qualquer porto, e os passageiros se debruçam no convés, à ré, a contemplar o percurso da ausência.
Mas os comboios são especiais. Naquelas cadeiras, a paisagem vira-se ao contrário. Eu nunca estou a chegar, estou sempre a partir; nada se aproxima de mim, todas as coisas fogem, as paisagens, os postes, as pessoas. Todas as coisas começam, de repente, grandes, e acabam por diminuir, tornar-se minúsculas, irreconhecíveis, ínfimas, nada.
Não te consegui ajudar. Não quiseste ensinar-me a ajudar-te. Ainda não sei porque é que, quando atravesso a tua cidade, perto da tua casa está sempre a chover. Na tua cidade, nos meandros da estação, há sempre um rapaz gordo, de passos lentos e pés solenes, agarrado a um guarda-chuva que nunca condiz com a roupa, sempre à espera. Se calhar à espera de uma rapariga, que se calhar gosta dele só como amiga, e se calhar nunca lhe apareceu, nem lhe aparecerá, e ele vai ficar ali, sempre à espera, a acreditar. É também na tua cidade que há um mendigo sentado num degrau sujo da rua mais deserta, e ele acredita, acredita, acredita, que lhe hão-de encher o copo de esmolas, apesar de estar na rua mais vazia, na noite mais escura, sob a espessa chuva.
Acho que tu vives numa das «Cidades Invisíveis» de Italo Calvino. Aquela que está dividida em duas partes: metade é a cidade monumental, cheia de indústria, comércio, serviços e ruas calcetadas. A outra metade é um imenso parque de diversões. Quando os habitantes se cansam das diversões desmontam metade da cidade: os monumentos, as indústrias, o comércio, os serviços, as ruas calcetadas, e vão construí-la noutro lugar. Se calhar perto de um outro enorme parque de diversões.
E tu tens pesadelos, acordas, de noite, a suar, porque aqueles que construíram a tua casa a desmontaram agora, pedra a pedra. Querias que tudo mudasse menos os teus alicerces, os teus pilares, o quarto onde descansas.
É por isso que costumas chorar, mas de uma forma que ninguém nota, tão delicadamente que as pessoas pensam que estás a sorrir, ou até a contar uma anedota brejeira. Mas eu dei por isso que choravas para dentro e sou mais culpado do que todos os outros porque soube, dei por isso, e ri com as tuas anedotas e o teu sorriso. Mesmo que te zangues com alguém, ninguém dá por isso, porque sorris. E até acho que morres de saudades de alguém só quando ele está perto de ti. Que mundo é o teu? Construímos pontes para serem belas e nunca atravessadas? Porque é que te foram roubar os alicerces da tua casa, pedra a pedra, até que ela foi desmoronando aos poucos, quase sem dares por isso?
Quando comprei o bilhete de partida, na estação onde está o rapaz gordo, de pés solenes, longe do mendigo que ainda acredita com o copo vazio, quando comprei o bilhete para sair da tua cidade invisível, pedi um lugar daqueles que andam ao contrário. O bilheteiro olhou para mim com ar de quem olha para um coala e perguntou se eu tinha a certeza. Eu disse que não, mas queria por força um desses lugares.
A única certeza que eu tinha é que, durante aquela viagem, eu não te voltaria as costas. Estou agora sentado no comboio. Vi-te, nitidamente, no apeadeiro da cidade ausente. Vi-te ficares para trás, mais pequeno, minúsculo, ínfimo. Sempre com a certeza de que eras tu. Porque, se à chegada se começa a ver um ponto irreconhecível e se o vai conhecendo à medida que se aproxima, à partida, mesmo que se não veja, sabe-se quem lá está sempre. À chegada há a esperançosa dúvida. À partida, a amarga certeza. A curva tirou-te da vista, a distância pôs-te longe demais, até a curva da terra quase nos colocou em hemisférios diferentes. E tu podes ter ficado a pensar que eu parti para outra. Mas eu juro que não te voltei as costas."
Artigo publicado no jornal de hoje "A União"
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